“Não chore, Guilhermina
Passei a detestar clubes desde o dia em que, há muitos anos, presenciei uma conversa entre alguns sócios de um famoso clube do Rio, o Country. Nesse tempo a garotada tinha a mania de roubar carros, dar umas voltas no quarteirão e depois largá-los em qualquer lugar. Detalhe: não eram ladrões, apenas adolescentes brincando de transgredir.
Só que nesse dia a polícia viu, e foi atrás; os meninos, apavorados, entraram no estacionamento do Country (eram filhos de sócios), e a polícia foi atrás. O final dessa história não importa, mas nunca esqueci do que ouvi. Segundo esses sócios, a polícia não tinha o direito de entrar num clube privado, que tal? Foi a partir daí que comecei a detestar clubes e, mais ainda, os que ditam as regras dos clubes.”
O texto toca em algumas lendas urbanas do mundo jurídico, e que valem a pena serem esclarecidas.
No primeiro parágrafo ele diz que os jovens tinham a mania de roubar carros.
Roubo acontece quando há violência ou grave ameaça. Se não houve nem violência, nem grave ameaça, não é roubo, mas furto.
Se a distinção entre os dois termos parece diletantismo acadêmico ou algo que só interessa aos juristas, talvez isso ajude a entender a importância dessa 'pequena' diferença entre os dois termos: a pena de um furto varia entre 1 e 4 anos; a pena de roubo varia entre 4 a 10. Em suas modalidades simples, a maior pena possível para o furto é a menor pena possível para o roubo. A lei faz a distinção justamente porque a sociedade achou necessário punir de forma muito mais severa o crime que vem acompanhado de violência ou grave ameaça contra a vítima.
Ainda no primeiro parágrafo, há uma menção de que não eram ladrões, apenas adolescentes brincando de transgredir. O problema é que para a lei, não importa se o criminoso cometeu o furto por diversão ou porque era um criminoso de carreira: o que importa é que ele cometeu o furto. Se o criminoso subtraiu coisa alheia móvel, não importa se ele é pobre ou rico ou se é a primeira vez ou a milésima vez: ele terá cometido um crime. Todos os demais fatores e nuances da vida do criminoso não muda o fato de que ele cometeu o crime. Tais nuances só vão ser relevantes no momento de o magistrado decidir o tipo ou tamanho da pena.
O terceiro ponto está relacionado aos dois anteriores: o chamado 'furto de uso' de fato não é crime pelas leis brasileiras.
Para que haja furto, deve haver a intenção de subtrair a coisa furtada de seu dono.
Embora a lei não diga que a subtração precise ser permanente, é assim que a maior parte de nossos juristas e magistrados a entendem, ou seja, se o ladrão apenas subtrai o carro com a intenção de “dar umas voltas no quarteirão e depois abandoná-lo”, ele não terá cometido furto do veículo porque ele não tinha a intenção de subtrair o veículo de forma permanente.
Só que isso é só meia verdade. Primeiro, porque enquanto ele está de posse do veículo, não há como ele alegar que tinha a intenção de devolvê-lo mais tarde. Todas as evidências fazem presumir que ele tinha a intenção de privar o dono da posse do veículo de forma definitiva. Não adianta o ladrão, pego pela polícia enquanto estava dando as “voltas pelo quarteirão”, dizer ‘eu juro que ia devolver’. Só não haveria furto se ele de fato já houvesse, voluntariamente, devolvido o veículo.
Segundo, porque embora ele possa até não ter furtado o veículo, ele terá cometido outros delitos, como o dano ao patrimônio no momento em que forçou a porta do carro, e o furto do combustível. Mesmo que ele já tenha devolvido o veículo, ele ainda poderá responder pelos delitos que se consumaram.
Já no segundo parágrafo, o texto diz que a polícia foi atrás dos criminosos mas eles entraram em um clube privado e por isso a polícia não poderia continuar a perseguição.
No Brasil, alguém só pode ser preso em duas circunstâncias: quando há um mandado de prisão expedido legalmente por um magistrado ou quando ele é preso em flagrante delito. E o que aconteceu no episódio narrado no texto acima é justamente essa segunda hipótese. Eles estavam sendo perseguidos logo após terem cometido um crime e isso constitui flagrante. Esconder-se em um clube privado não muda a situação. A polícia pode entrar e prendê-los porque ainda os estava perseguindo durante uma situação de flagrante. Ela não precisa de mandado para isso.
Imagine a cena: o policial está andando pela rua à noite e houve alguém gritando por socorro de dentro de uma casa. Seria absurdo se ele precisasse esperar o dia amanhecer para ir ao fórum pedir um mandado ao juiz para finalmente prestar socorro à vítima. A vítima já estaria morta. Ele irá socorrer a vítima e prender o criminoso em flagrante no momento em que o crime está sendo cometido. As circunstâncias possibilitam que ele presuma a possibilidade de um flagrante.
O fato de ser uma propriedade privada não faz do clube um espaço imune à jurisdição do Estado. Se fizesse, os criminosos poderiam fundar um clube para ali cometerem seus crimes. Jamais seriam punidos.
O que provavelmente aconteceu na situação descrita acima - e acontece com frequência na prática - é que a polícia não estava perseguindo os criminosos: a polícia estava investigando um crime e, no curso da investigação, ela quis entrar no clube. Como não havia flagrante, ela precisaria ou de um mandado para entrar na propriedade privada, ou da permissão do dono da propriedade. Como ela não tinha nem um nem o outro, ela foi impedida de entrar.